
EFEITO ESTUFA
Entre as formas de alteração do meio ambiente trazidas pela pandemia, uma das mais sentidas e perceptíveis estão relacionadas aos gases do efeito estufa (GEE). Como demonstrado nos outros dois capítulos desta reportagem, muitas dessas mudanças interferem diretamente na emissão e reprodução desses gases responsáveis não apenas pelo aquecimento global, mas também pela transmissão de doenças e agravamento de infecções respiratórias.
O Sistema de Estimativa de Emissões de Gases do Efeito Estufa (Seeg), um braço do Observatório do Clima, lançou uma nota técnica sobre a pandemia. “Impacto da Pandemia de Covid-19 nas Emissões de Gases do Efeito Estufa no Brasil” discutiu e estimou mudanças no panorama do país para os GEE durante o período de lockdown no Brasil.
Com base em estudos da CarbonBrief, referente ao potencial de 2020 ser o ano com a maior queda em emissões de CO2 da história, o Seeg chegou a uma conclusão: o Brasil correu na contramão do resto do mundo quanto ao despejo de CO2 na atmosfera. Assim sendo, passa-se pelos mesmos tópicos - Energia, Indústria, Agropecuária, Resíduos e Mudanças de Uso da Terra, muito dos porquês e o que transcorreu durante os meses seguintes ao início do isolamento social no nosso país.

Crédito: Pixabay
ENERGIA
O terceiro setor que mais polui no Brasil é o de Energia, correspondendo a aproximadamente 413,7 MtCO2 (milhões de toneladas) em 2019. Uma das esferas mais interligadas a acompanhar tendências econômicas, é considerada como uma das responsáveis pelas tendências de queda em emissões de GEE em 2020 no mundo todo, segundo relatório do CarbonBrief. No Brasil, não seria diferente e esperava-se que muito fosse feito com o setor. Mesmo sem dados consolidados para o ano, algumas expectativas se concretizaram durante o período de maior isolamento social, entre março e maio.
O Brasil, de acordo com Felipe Barcellos, pesquisador da área de energia e meio ambiente do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), segue uma linha distinta do resto do mundo quanto às emissões de gases do efeito estufa na área de energia, já que a produção de eletricidade é a principal responsável pelo consumo nos demais países do globo. “No Brasil, o que mais emite GEE são os transportes e eles são divididos meio a meio entre passageiros e cargas. No transporte de passageiros, o que vimos foi que de fato houve uma queda brusca, principalmente de aviões, que usam querosene de aviação. A queda se manteve até o fim do ano”, explica o pesquisador.
Há razão em levantar esse ponto. A principal matriz elétrica brasileira é a hidrelétrica, vista como uma fonte limpa e renovável, é responsável por 62,53% da energia brasileira. Ao todo, o país tem 83% de fontes renováveis de energia, segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Enquanto isso, mesmo utilizando-se de biocombustíveis, como o etanol, o consumo de combustíveis fósseis, como o diesel e a gasolina, ainda predominam no país.
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Por ser um país com características modais de transporte rodoviário e ter em caminhões parte da sua frota de distribuição, o diesel apresentou alta de 0,3% no ano passado, demonstram dados da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Foram 57,4 bilhões de litros vendidos. A gasolina apresentou aumento em relação a dezembro do ano anterior, porém queda no panorâma geral. Foram 35,8 bilhões de litros vendidos, queda de 6,13%. O etanol apresentou baixa de 14,58% se comparado ao ano pré-pandemia.
Dados estes importantes para demonstrar como o brasileiro aderiu ao isolamento. “O que vai acontecer é que, se fossemos ver as emissões de 2020 numa linha do tempo, veríamos um buraco no momento de auge da pandemia, que as pessoas pararam e depois vão voltando gradualmente e hoje já está quase em sua normalidade. Isso reflete também um pouco do patamar que o país está nas suas normas, regras e tendência das pessoas na quarentena”, resume Barcelos.
De acordo com dados da própria ANP, excluindo o Gás Liquefeito do Petróleo (GLP), todos os outros combustíveis (diesel, gasolina e etanol) apresentaram quedas vertiginosas em suas vendas no mês de abril, quando foram verificadas as maiores taxas de isolamento social em cidades como São Paulo, a mais populosa e com maior frota de carros do país. Durante os meses de maio e junho, a cidade conseguiu diminuir o número de carros e a frota de transporte público nas ruas, levando à menores taxas de congestionamento, como apontam os gráficos da Companhia de Engenharia de Trânsito de São Paulo (CET) abaixo:


Crédito: CET/Reprodução
As quedas, tanto do número de carros, ônibus e caminhões nas ruas, levaram à reflexões antigas, mas sempre atuais: o quão necessário é o debate sobre mobilidade urbana. A emissão de poluentes por combustíveis para automóveis no Brasil parte do etanol hidratado como o que menos polui, passando pela gasolina e chegando ao diesel, como o maior vilão entre o despejo de GEE, como CO2 e NO2, e material particulado na atmosfera da capital paulista.
Outro ponto importante na poluição do ar quanto ao transporte, é a aviação. Para Renato Braghieri, cientista, pesquisador e PhD da NASA, esse consumo é violento. “Em voos transatlânticos, ida e volta, você gasta em torno de 1,6 tCO2. Só essas duas viagens que uma pessoa fez, é quase a média anual de uma pessoa na Índia que não voou”, explica o pós-doutor. O The Guardian, jornal inglês, publicou uma matéria e um simulador que explicitam o consumo de carbono em cada voo e a relação de gastos anuais médios de países em que pessoas despejariam menos carbono na atmosfera.
A redução de voos comerciais em 2020 foi de 60%, número que deve impactar diretamente nos 2% correspondente à aviação em emissões de GEE anualmente. Voos são cada vez mais necessários por encurtar distâncias, porém se evitados, seriam positivos ao planeta. “Eu moro em Los Angeles, mas minha família mora no Brasil e tenho que voltar, mas, ao invés de voltar todo ano, eu poderia voltar uma vez a cada dois anos. Fazer uso de tecnologia que nós temos, como mídias sociais e vários outros meios de se comunicar por vídeos. Não é a mesma coisa, mas estaríamos reduzindo as emissões”, relata Renato. Mesmo assim, o setor de aviação continua crescendo. A Associação Internacional de Transportes Aéreos (IATA) em seu relatório anual, revela a intenção das companhias aéreas de continuar baixando as emissões anuais do setor e chegar a 50% do que era em 2005 até 2050.
O Carbon Monitor, uma iniciativa internacional para prover dados sobre emissões de carbono baseadas em estimativas diárias de combustíveis fósseis, exibe que o Brasil deixou de despejar 41,9% MtCO2 em 2020. Isso corresponde a uma queda de 9,8% em setores como energia elétrica, aviação, transporte, residencial e indústria. No mundo todo, o número chega a 4% a menos de emissões de GEE no ano passado, como mostra o gráfico abaixo.

Crédito: Carbon Monitor/Reprodução
Felipe Barcellos fala sobre modais de transporte no Brasil
INDÚSTRIA
A indústria, segundo o gráfico apresentado acima, teve baixa de 5,1% MtCO2 no ano passado em suas emissões. Setor responsável por 5% do total de GEE em 2019, tem mais de 68% desse número atrelado à indústria siderúrgica e à do cimento. Já o número abaixo do esperado se relaciona ao desempenho do aço. O Instituto Aço Brasil (IAB), revelou queda de 4,9% na produção em 2020, com relação ao ano anterior. A maior queda foi vista no mês de abril.

Crédito: Instituto Aço Brasil/Reprodução
O cimento, por sua vez, teve uma trajetória diferente. “No começo da pandemia, o cimento continuou, não parou. Provavelmente, porque o setor de construção foi considerado um setor prioritário. Inclusive, faltava cimento no mercado. Isso acabou que, nas emissões, se refletiu. Esse setor de energia e processos industriais têm muito a ver com atividade econômica do país. Se a atividade está acelerada, vai emitir mais, inevitavelmente”, analisa Felipe Barcellos.
Essa observação mostra-se alinhada à realidade. Nos dois primeiros meses de isolamento, o setor demonstrou retração, mas parou por aí. Foram os únicos resultados do ano passado nos quais o cimento não demonstrou aumento com relação à 2019. Com um possível impulsionamento às reformas durante a pandemia, ao longo de 2020, o cimento conseguiu atingir os 11% de crescimento nas vendas com relação ao ano anterior inteiro, revelam dados do Sindicato Nacional da Indústria do Cimento (SNIC). O impacto desse aumento provavelmente foi sentido quanto à redução de emissões de GEE no país, não tendo colaborado tanto para uma queda mais brusca no número.

Crédito: SNIC/Reprodução
Um dos problemas da indústria no Brasil é sua eficiência energética, o que pode explicar as emissões. “Nós temos uma indústria que tem uma eficiência energética que não é ideal. A indústria esquenta caldeiras para fazer algo girar e, como os processos não são otimizados ao máximo, às vezes gastam mais energia que o preciso para chegar ao mesmo resultado. Eficiência energética também é uma maneira de reduzir emissões. Isso faz com que consumam menos combustíveis”, explica Barcellos.
RESÍDUOS
Setor associado a 4,4% (96 MtCO2) do total das emissões de gases atrelados ao aquecimento global em 2019, os resíduos foram uma grande incógnita durante 2020. Dividido entre resíduos sólidos urbanos (RSU), resíduos de serviços de saúde (RSS), efluentes líquidos domésticos e efluentes líquidos industriais, suas emissões foram fragmentadas e divergiram entre subidas e descidas.
Até o momento em que a reportagem foi publicada, não haviam dados consolidados quanto aos GEE disparados pelo setor, mas como houve aumento no número de resíduos, como demonstra o segundo capítulo desta reportagem, há a tendência do crescimento emissões do setor em 2020, contrariando a expectativa do relatório do Seeg de que ele seria capaz de manter-se estável no período.
AGROPECUÁRIA
“O setor de agropecuária tem um detalhe interessante: se as pessoas deixam, durante uma crise econômica, de consumir carne, fica mais boi no pasto. Um abatedouro, se as pessoas não compram, não abate o boi. Se não abate, ele fica mais tempo no pasto, então ele está emitindo mais por estar vivo. É um contrassenso. Enquanto na energia e na indústria, quanto mais atividade econômica mais se emite, às vezes a agropecuária pode ter uma redução de atividade econômica e emitir mais porque tem boi no pasto esperando para ser abatido”, desenvolve Felipe Barcellos.
Esse é um dos apontamentos que faz do setor um dos únicos a apresentar aumento nas emissões de GEE e contribuiria para que o Brasil seja um dos únicos países a aumentar suas emissões no ano de 2020, como apontou a estimativa do Seeg. Em 2019, a agropecuária causou o despejo de 598,7 MtCO2, ou 28% do total do Brasil.

Crédito: MAPA/SIF/Reprodução
Os gados de corte e leite são as principais emissões do setor (61%), pois produzem CH4, o gás metano. Por representarem o maior expediente da pecuária brasileira, são extremamente nocivos ao meio ambiente e um dos maiores colaboradores do efeito estufa. Isso, atrelado ao exposto pelo pesquisador do IEMA, apresenta o segundo principal fator no possível aumento de GEE do Brasil e por dois motivos: bovinos poluem mais que carros e emitem um gás mais danoso ao ambiente.
“Em primeiro lugar, liberam metano, que é um gás do efeito estufa muito potente. Muitas vezes mais potente que o CO2. Em segundo lugar, esse gado tem que comer outras fontes de alimento, como milho e soja. O processo de produção de carne é muito ineficiente. Não é só produzir um alimento, você tem que produzir um alimento vegetal para depois produzir o alimento animal. E, por fim, a produção de carne requer muita água, muito fertilizante (que também pode liberar GEE) e desmatamento”, revela Braghieri. Afirmações essas que levam aos outros contribuintes do efeito estufa pelo setor agropecuário, como os fertilizantes sintéticos, cultivo de arroz e cana de açúcar.
MUDANÇAS NO USO DA TERRA
O maior vilão das emissões de GEE no Brasil são as mudanças de uso da terra, setor que computou 44% do total no país em 2019. Toda mudança é computada, seja em novas áreas verdes ou através do desmatamento, todavia, o número de árvores retiradas - ou queimadas - é muito maior do que as plantadas. Previsões estimam um aumento no número de árvores desmatadas no país, mesmo durante o início da pandemia. Como você pode ver na primeira reportagem desta série, um dos motivos foram as medidas governamentais que acabaram por incentivar a prática.
“Apesar da pandemia, espera-se que haja um crescimento bem grande das emissões brasileiras, principalmente puxada pelo setor de mudanças de uso da terra, que contabiliza o desmatamento, principalmente na Amazônia e no Cerrado, que é o que mais tem carbono no solo e nas florestas, que, se desmatar, será contabilizado como emissão”, esclarece Barcellos.
Este fato se faz verdadeiro, pois as árvores são os grandes tanques de retenção de carbono, pois retiram esse gás da atmosfera e os absorvem, graças a processos como a fotossíntese, por exemplo. Retirando uma árvore do solo, ela liberará todo o carbono armazenado e deixará de retirar o existente no ar. Entre 1988 e 2018, teriam sido removidos 784 MtCO2 da atmosfera, o equivalente a 12% das emissões por desmatamento (6,7 bilhões de toneladas) para o mesmo período na Amazônia Brasileira, de acordo com estudo da Revista Scientific Data, da editora Nature, por florestas secundárias, aquelas replantadas em áreas que desmatadas.