
RESÍDUOS SÓLIDOS URBANOS
A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) foi instituída em 2010 e, desde então, apresentou poucos avanços na gestão de resíduos domésticos, industriais e dos serviços de saúde (RSS). O princípio básico da medida é a não geração de lixo, seguida da redução e reciclagem. Por fim, orienta sobre o tratamento e destinação adequados do mesmo.
Em uma década, a produção de resíduos sólidos urbanos (RSU) cresceu em 11%, passando de 71,2 milhões de toneladas ao ano para 79 milhões. Cada pessoa seria responsável por gerar cerca de 380 quilos de lixo anualmente, a depender de questões regionais e socioeconômicas. Os dados fazem parte do Panorama dos Resíduos Sólidos 2018/2019, emitido pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). Nesse ritmo, o mundo poderá entrar em colapso até 2050, segundo informações da Organização das Nações Unidas (ONU).
Quanto ao encaminhamento dos resíduos, o relatório aponta que o país ainda mostra alto índice de destinação incorreta, com taxa mínima de reciclagem. Ao todo, 6,3 milhões de toneladas de lixo são abandonadas no meio ambiente a cada ano, enquanto apenas 4% do país destina seus resíduos à coleta seletiva.
A relação entre os dados da PNRS e a geração de resíduos durante o período de pandemia aponta para a maneira como a gestão inadequada do lixo pode causar efeitos imprevisíveis à saúde humana e ao meio ambiente. Nesse novo contexto, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) alertou sobre a necessidade de manter atenção redobrada ao manuseio seguro e ao descarte final desses materiais. Além disso, o último ano trouxe a urgência em reformular os moldes capitalistas de geração de lixo doméstico, o encaminhamento de resíduos hospitalares e os cuidados com os oceanos.

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RESÍDUOS DOMÉSTICOS E RECICLAGEM
O lockdown transformou os hábitos de consumo dos brasileiros, entre outras questões, como a saúde e a economia. Com mais tempo dentro de casa, todos os resíduos sólidos passaram a se concentrar em um único local e escancaram a produção individual e/ou familiar. Enquanto isso, os serviços de comércio on-line e delivery de alimentos ganharam força durante o período - resultando na maior geração de resíduos das embalagens.
A Abrelpe estima que as medidas de isolamento social desencadearam um crescimento de 15% a 25% na quantidade de resíduos domésticos em todo o país. Em relação à coleta seletiva, os dados são ainda mais expressivos: o crescimento entre os materiais recicláveis foi de 30% em relação ao mesmo período do ano anterior.
Na cidade de São Paulo houve alinhamento com o restante do país nessa questão, como aponta a Autoridade Municipal de Limpeza Urbana (Amlurb), responsável pela coleta domiciliar seletiva, varrição e limpeza das vias públicas. Cristina Pinheiro, gerente de planejamento da empresa, confirma essa mudança:
“O primeiro ponto que nos chamou atenção foi o aumento dos recicláveis neste momento de pandemia. No ano de 2020, tivemos um crescimento recorde do volume da coleta seletiva. Foram um total de 94,4 mil toneladas de materiais recicláveis coletados em todo o período, o que representa uma média histórica para os últimos 10 anos”, pontua. Os dados mencionados apontam para um crescimento de 17,4% em comparação ao mesmo período do ano anterior. Já, ao avaliar apenas os meses atingidos pela pandemia, o aumento de resíduos corresponde a 20%.
“Teve um mês que nós tivemos uma queda de 75% nos resíduos de varrição. Então, aí a gente consegue comparar que, de fato, as pessoas ficaram em casa e aquilo que consumiam em seus trabalhos, nas ruas, almoçando e consumindo o comércio local do trabalho, passou a ser consumido em casa”, completa a profissional.
Os motivos atribuídos a esses feitos não estão relacionados apenas ao lockdown, como também à mudança nos modelos de consumo e à conscientização da população brasileira. A princípio, o esperado era que a instabilidade econômica também pudesse influenciar a geração de resíduos domésticos, reduzindo o volume de material, porém isso não se confirmou em dados.
Neste período, o comércio on-line foi responsável por grande parte das compras das famílias brasileiras, apresentando crescimento de 205% em relação a 2019. Por via de regra, as embalagens do varejo eletrônico são feitas de plástico e papelão - ambos resíduos recicláveis - o que, de acordo com a Abrelpe, seria uma das justificativas para o crescimento da coleta seletiva. A associação estima que a geração desses materiais tenha aumentado em 30%.

Crédito: Relatório anual do e-commerce em 2020 e tendências para 2021/Reprodução
A Amlurb reforça que a conscientização da população foi responsável pela mudança no perfil dos resíduos. “Nós acreditamos fortemente na reflexão sobre o que estamos fazendo dentro de casa, o fato da pessoa estar vendo quantos sacos estão sendo gerados, seja de lixo orgânico ou de reciclável. Então, eu acho que é algo que vai ficar [depois da pandemia]”, ponderou a especialista. Cristina Pinheiro relaciona os efeitos na cidade de São Paulo, principalmente, ao sucesso da campanha Recicla Sampa, que incentiva os munícipes a aderirem à coleta seletiva e esclarece possíveis dúvidas sobre a reciclagem.
A mudança parece otimista, entretanto, não gerou resultados tão positivos durante o período de pandemia. Isso porque o processo de reciclagem não cresceu na mesma proporção que a geração de resíduos recicláveis - como apontam os dados do Índice de Sustentabilidade da Limpeza Urbana (ISLU). De maneira geral, o processo de triagem manual e as atividades dos catadores autônomos tiveram que ser paralisadas para a proteção dos trabalhadores contra a doença. Em São Paulo, a triagem permaneceu sendo feita através de máquinas especiais, porém as demais cidades do país não contam com essa tecnologia. Assim, o destino final desses resíduos passou a ser os aterros sanitários ou lixões até a retomada do setor, entre o meio e o final de 2020.

Crédito: Indice de Sustentabilidade da Limpeza Urbana (ISLU)/Reprodução
Vale mencionar que as recomendações da Amlurb, assim como de outros órgãos especializados em coleta seletiva no país, é que pessoas contaminadas pela Covid-19 ou com suspeita da doença direcionem todos os seus resíduos ao lixo comum, ainda que sejam recicláveis. A medida visa a proteção dos catadores e do meio ambiente, considerando que o vírus pode permanecer por até 72 horas após a contaminação em determinadas superfícies. “A Amlurb pede para que tenha um trancamento com dois sacos, até um terço da sua capacidade para evitar que eles rasguem e contaminem os coletores. Se possível, vale colocar um papelzinho ali e escrever ‘contaminado’, que é para que os coletores tenham esse cuidado”, explica a gerente de planejamento.
Por todas as razões mencionadas, o isolamento social colocou em xeque questões que já estavam sendo debatidas em fóruns ambientais muito antes da pandemia. O cenário permitiu que muitas pessoas estivessem cara a cara com o impacto ambiental produzido pelo lixo e buscassem novos modelos de consumo e descarte menos agressivos à natureza.
O Professor Doutor do Instituto de Ciência e Tecnologia da UNESP, Ricardo Gabbay de Souza, oferece alguns caminhos para a retomada verde em relação à problemática dos resíduos. “Consumir menos embalagens de uso único, priorizar produtos biodegradáveis, reduzir os desperdícios, principalmente de comida, aproveitar resíduos para o reuso dentro de casa e implantar a compostagem domiciliar”.

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RESÍDUOS HOSPITALARES
Cada leito hospitalar gera, em média, 1,5 quilo de resíduos de serviço de saúde (RSS) diariamente. Enquanto isso, um paciente internado para o tratamento de Covid-19 pode produzir cerca de 7,5 quilos. De maneira geral, casos graves infectados pelo coronavírus ficam internados entre 14 e 21 dias no sistema de saúde - totalizando até 157,5 quilos de lixo hospitalar. Os dados são da Abrelpe e podem sofrer influências econômicas, políticas, tecnológicas e socioculturais.
Durante a pandemia, os equipamentos de proteção individual (EPIs), entre outros tipos de RSS (divididos nas categorias A, B, C, D e E), são descartados pelos profissionais de saúde em ritmo acelerado, visando a proteção contra o contágio pelo vírus. Dessa forma, o paralelo entre a geração de resíduos hospitalares em larga escala e o crescente aumento de pacientes em leitos hospitalares começou a preocupar os especialistas em manejo de resíduos desde o início.
Em abril de 2020, a Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos (Abren) alertou o Ministério da Saúde sobre os riscos do crescimento desenfreado da produção de materiais biológicos e perfurocortantes por parte dos hospitais, clínicas e laboratórios durante a pandemia. Segundo o órgão, as taxas poderiam crescer em, pelo menos, quatro vezes - o que iria obstruir o sistema de tratamento de resíduos, expondo a população e a natureza à contaminação. Aí começa o problema ambiental.
A título de comparação, o Ministério do Meio Ambiente da China divulgou que o volume de RSS em Wuhan foi seis vezes maior em meio à crise. Entretanto, o Brasil contrariou as previsões e apresentou redução no lixo hospitalar em um primeiro momento de pandemia. Foram descartados 17% e 4,6% a menos de material durante os meses de abril e maio, respectivamente.O motivo atribuído para tal resultado foi a paralisação parcial das atividades hospitalares, como cirurgias e procedimentos eletivos. Na época, a prioridade foi a contenção da transmissão do vírus e a não saturação dos serviços de saúde.
Entretanto, em junho, foi inevitável o adiamento de determinados serviços de saúde. Para completar, o número de pacientes internados por Covid-19 continuou a crescer, até chegar ao primeiro pico, entre julho e agosto. Neste período, o crescimento da produção de lixo hospitalar foi equivalente a 20%, em comparação ao ano anterior. Até a publicação desta reportagem, não foram divulgados dados mais recentes da geração de resíduos hospitalares por nenhuma das associações responsáveis. Entretanto, é possível concluir que a geração de RSS acompanhou o ritmo dos casos e internações por Covid-19 no país.
Apesar de necessário, o cenário é negativo para o meio ambiente em dois diferentes contextos. O primeiro deles considera o tratamento integral dos resíduos médicos. Nesse caso, a recomendação da PNRS, em concordância com as diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS), para o tratamento para algumas categorias de RSS é a incineração.
O método é considerado o mais eficaz e seguro para a destinação destes resíduos. Entretanto, se não executado seguindo os protocolos ambientais, é responsável pelo lançamento na atmosfera de Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs), Gases do Efeito Estufa (GEE) e pela geração de cinzas com alto teor de contaminação por metais pesados - dados da Moção pelo Fortalecimento da Coleta Seletiva com Integração dos Catadores Contra a Incineração de Resíduos Sólidos Domiciliares.
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Por outro lado, o não tratamento desses resíduos é capaz de potencializar os riscos de contaminação por parte da população e do meio ambiente. No caso das categorias que não apresentam risco de infecção, a recomendação é manter cuidados na segregação, identificação, armazenamento e transporte. Atualmente, o Brasil tem capacidade de processar 480 mil toneladas de resíduos de serviços de saúde ao ano. Fora do período de pandemia, os hospitais, clínicas e laboratórios produzem cerca de 253 mil toneladas. Portanto, é possível concluir que a multiplicação desse valor por quatro 1.012 milhão de toneladas), seguindo as previsões da Abren, o sistema ficaria sobrecarrecado em 110%.
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Crédito: Instagram @unplash/Reprodução
RESÍDUOS E VIDA MARINHA
Por sua vez, os mares e oceanos também foram afetados negativamente pela geração de resíduos sólidos. Isso porque o período de pandemia desencadeou um novo tipo de poluição às águas: o descarte irregular de EPIs. Máscaras e luvas descartáveis passaram a ser encontradas flutuando nos oceanos e tornaram-se mais uma entre as ameaças à vida marinha.
O Instituto Akatu, organização não governamental direcionada ao consumo consciente, aponta que o Brasil pode ter descartado mais de 12,7 bilhões de máscaras em um ano de pandemia. Em complemento, um relatório da OcensAsia aponta que, pelo menos, 3% desses resíduos serão arrastados às águas, seja pelo descarte irresponsável ou pelo sistema de gerenciamento inadequado.
“Essa é uma nova ameaça que, infelizmente, chegou junto com a pandemia. Então, embora a pandemia tenha reduzido o volume de lixo quando tirou as pessoas da praia, ela agora está aumentando o risco, quando as pessoas acabam dispensando essas máscaras em local inadequado”, afirma o oceanógrafo Hugo Gallo Neto, presidente do Instituto Argonauta.
Reportagem da BBC sobre o descarte inadequado de EPIs nos oceanos.
A situação fica ainda pior ao considerar que esses materiais são compostos por partículas de micro-plástico e nano-plástico, que, segundo o Ministério do Meio Ambiente, podem demorar até 400 anos para se decompor, oferecendo grandes riscos de ingestão acidental por animais, obstrução de seu sistema digestivo e consequente morte. Além disso, as argolas elásticas das máscaras representam um possível perigo de emaranhamento para a vida marinha. “Esse tipo de resíduo causa mal e mortalidade também na fauna marinha, além da irresponsabilidade da pessoa que dispensa uma máscara em um lugar inadequado, pois como é um lixo hospitalar, traz o risco de contaminação de outras pessoas”, completou o oceanógrafo.
Um exemplo claro deste impacto ambiental ocorreu em setembro de 2020, quando uma máscara facial N95 foi encontrada enrolada no estômago de um Pinguim-de-Magalhães. O caso aconteceu na praia de Juquehy, em São Sebastião (SP), e foi registrado pelo Instituto Argonauta, responsável pelo PMP (Projeto de Monitoramento de Praias) na Bacia de Santos*.

Crédito: Instituto Argonauta/Reprodução
“A equipe do Projeto de Monitoramento de Praias da Bacia de Santos (PMP-BS) do Instituto Argonauta para Conservação Costeira e Marinha foi acionada para recolher o animal morto. De acordo com informações da equipe técnica, ele estava muito magro e com muita areia em todo o corpo”, narra Carla Beatriz Barbosa, bióloga coordenadora do monitoramento da região.
“Todos os animais mortos que são recolhidos pela instituição são encaminhados para necropsia com a finalidade de identificar a causa da morte, e o lixo em geral é frequente nos exames. Sendo assim, o pinguim foi levado para a Unidade de Estabilização (UE) do Argonauta, mas, para surpresa de todos, o exame localizou lixo oriundo da pandemia enrolada em seu estômago, uma máscara facial N95”, completa a profissional.
Apesar de alarmante, a situação não foi a única registrada na região e se reflete em todo a costa brasileira. O Instituto Argonauta, em parceria com o Aquário de Ubatuba, tem registrado mensalmente o descarte inadequado desses aparatos de segurança através do Boletim do Lixo.
Entre maio e dezembro de 2020, foram recolhidas pela equipe um total de 315 máscaras descartadas de forma incorreta nas areias das praias mencionadas. O pico aconteceu durante o mês de dezembro, início do verão e da temporada. “Nós sentimos que a falta de educação da população que frequenta o litoral em relação a questão da destinação dos resíduos, que precisa ser trabalhada de forma eficiente em todos os níveis, desde criança nas escolas, ainda com a criação de legislação mais rígida para evitar que as pessoas joguem lixo em qualquer lugar”, alertou Hugo Gallo Neto.

Crédito: Instituto Argonauta/Reprodução
Nesse sentido, a ideia é que os EPIs continuem fazendo parte da rotina de todos os brasileiros ao decorrer da pandemia, devido à sua importância na proteção contra o coronavírus. Entretanto, é fundamental garantir o descarte adequado desses materiais, nunca no chão ou na rua, para que não prejudiquem a vida marinha, o meio ambiente ou, até mesmo, outras pessoas. Outra recomendação é cortar as alças elásticas das máscaras para impedir que fiquem presas à animais marinhos. Além disso, também vale considerar escolhas mais sustentáveis na hora de adquirir os equipamentos, avaliando o melhor material, os métodos de limpeza, conservação e descarte de cada um.
“Nós somos todos filhos da Terra, desde um vírus até o Homem. Mas, o Homem tem desrespeitado essa regra e acreditado que pode manipular a Natureza da forma que bem entende. Os resultados, infelizmente, estão demonstrando quão perigosa pode ser essa relação inadequada e desrespeitosa que a humanidade está tendo com a natureza”, finalizou o especialista.